A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração.
Alceu Valença
Os efeitos da pandemia COVID-19 estão longe de passar, especialmente em um de seus aspectos colaterais mais perniciosos para a saúde mental e emocional da população: o isolamento social. Nos últimos dois anos, todos nós tivemos que ficar em casa, em algum momento e medida, privando-nos assim de contatos presenciais tão importantes para a qualidade de vida.
Porém, não é de hoje que a humanidade, precisa lidar com certos dilemas da solidão. A solidão é amiga de poetas e artistas, na qual buscaram inspiração, mas também é assombração para muitos mais, com quem a relação sempre é de algoz e vítima. Na atual sociedade pós-moderna, o fenômeno da solidão, que causa descompasso ao coração, tem levado à discussão de políticas públicas com o lançamento de campanhas publicitárias em vários países, a partir de estudos que demonstram o crescimento da solidão, a ponto de ser já ser considerada uma pandemia de saúde mental.
A pandemia empurrou a existência não apenas para a virtualidade, mas também potencializou o individualismo, alimentado por relacionamentos pontuais e esporádicos no ambiente de trabalho cada vez mais em casa, e nas interações sociais apenas por meio de mensagens escritas em redes sociais e em grupos de conversa. Some-se a isso, a família nuclear encolhendo para se tornar cada vez menor, o envelhecimento da população e o distanciamento dos laços familiares e redes de apoio emocional de antigamente (a família estendida de avós, tios e primos, a vizinhança da rua etc.), então está pronto o cenário, que anualmente adoece e mata, direta ou indiretamente, milhões de pessoas
No caso de culturas como a brasileira, que outrora já foram mais relacionais e coletivistas, pela globalização com suas trocas simbólicas, inclusive com a incorporação de hábitos diários de maior distanciamento emocional e relações mais utilitaristas, o que se vê é um sofrimento ainda maior, embora perigosamente silencioso e escondido sob os vários disfarces sociais. Por trás daquele seu amigo falante e sorridente, do parente contador de piada nas reuniões familiares ou do colega de trabalho e de faculdade tão solícito e prestativo pode haver uma alma que sofre sozinha pelos motivos mais variados!
O pano de fundo para muitas doenças mentais e emocionais, além de comportamentos de risco para seus portadores e seus entornos sociais, inclusive aqueles relacionados ao abuso de álcool, de substâncias psicoativas etc. pode ser uma vida sem significado estruturante, embora cheia de atividades diárias. Ou então, pode ser apenas uma tentativa de coping, a estratégia emocional de “levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima” para aguentar o tranco de viver, quando as dores são devidamente envelopadas em sorrisos, temperadas com “ois”, “bons dias”, “vai chover!”, trocados por passageiros de elevadores e metrôs, e passantes de corredores e ruas.
A referência à música do compositor Pernambucano descrevendo essa solidão silenciosa, que devora a alegria e mata a própria vida, é justamente porque alguns gritos de socorro, quando ouvidos, via em regra já são tarde demais. E aí reside a perniciosidade dessa solidão escondida, tanto por quem está em sofrimento, que frequentemente luta para aguentar sozinho e parecer que está bem com a vida e com todos, como também devido à indiferença, voluntária ou não, de todos que deveriam ouvir para além da aparente normalidade e naturalidade da prosaica existência no “bloco do eu sozinho”.
Um olhar e uma escuta atentas são fundamentais a todos nós, a fim de identificar as tristezas, decepções e frustrações silenciadas pela imperiosa necessidade de continuar aos troncos e barrancos. Não à toa, Jesus já advertia que “o amor de muitos esfriará” e que “amar ao próximo, como a si mesmo”, além de completar “o amar a Deus acima de tudo”, como deveres que agradam ao Criador de todos nós, também pavimenta a via dupla para relacionamentos de ajuda mútua.
A questão não é simples de diagnosticar, e certamente, não ajuda muito apontar dedos para os outros e isentar-se, sem propor soluções que envolvam a todos e a cada um, pois certamente o melhor caminho passa por um despertar individual de re-humanização das relações sociais e do significado mais profundo da própria vida, como dom de Deus para ser compartilhado com outros, pois a famosa expressão “não é bom que o homem esteja só” foi a constatação do próprio Criador.
Depende de cada um de nós trocar a violência verbal, psicológica e física, a indiferença venenosa inoculada até em ambientes virtuais, via ódios e cancelamentos, por uma cultura de respeito e solidariedade, que cure essa sociedade disfuncional, cujas doenças de base são o egoísmo, a ambição, a autossuficiência e a vaidade de cada um de nós.
Para o seu bem, daqueles que você ama e de todos ao seu redor, é preciso uma reflexão séria, sobre o papel de falar sobre a própria dor e de escutar a dor do outro. Ou será, que nós mesmos já tivemos os corações devorados por essa solidão silenciosa, e já não nos resta mais nada, a não ser contemplar os “relógios caminharem lentos”, marcando o pouco tempo que resta para o silêncio eterno?
Com carinho
Robinson Grangeiro Monteiro
Chanceler do Mackenzie