Direito de Família: TJ-RS reconhece união paralela ao casamento

RESUMO DA NOTÍCIA

Decisão do TJ-RS reconhecendo união estável paralela ao casamento é celebrada por especialistas. Autora da ação contou que se relacionou por mais de 14 anos com o parceiro enquanto ele era legalmente casado
A decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que atendeu parcialmente a um recurso e reconheceu um caso de união estável paralela ao casamento, foi celebrada por especialistas em Direito de família ouvidos por GZH. O entendimento da 8ª Câmara Cível é considerado incomum, já que o Código Civil estabelece como exceção apenas quando a pessoa é separada de fato ou judicialmente.
 
Vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias avaliou a decisão como "emblemática". Ela compreende que o definido pelo relator, desembargador José Antônio Daltoé Cezar, "arrancou o véu da hipocrisia" em casos semelhantes. 
 
 — A tendência dos homens em manter dois relacionamentos é uma realidade masculina que todos conhecem. O casamento e a outra, duas uniões estáveis, dois casamentos ou um casamento e uma união estável. Diante disso, no momento que a Justiça dizia que o outro relacionamento não existe, acabava sendo condenação para as mulheres. Esse julgamento foi ético, porque impõe que as pessoas são responsáveis pelos relacionamentos que mantêm — diz Maria Berenice. 

Desembargadora aposentada do TJ e um dos principais nomes na área, ela também interpreta que o acórdão pode pautar outras decisões em casos semelhantes: 

— A Justiça do Rio Grande do Sul é extremamente pioneira. Essa não é a primeira decisão, mas é uma decisão importante, de um dos tribunais mais representativos do Brasil. Isso atenta a realidade da vida como ela é. Essa é a responsabilidade da Justiça, e não tentar que as pessoas entrem em determinados padrões de comportamento eleitos pelo legislador. 
 
Em seu voto, Daltoé Cezar declarou que, “se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio após a morte, se fazendo necessária a preservação do interesse de ambas as células familiares constituídas”. Além disso, também manifestou que não pode o “formalismo legal” prevalecer sobre uma situação de fato consolidada por anos, e que no Direito de família contemporâneo o “norte” é o afeto.

“Deixando de lado julgamentos morais, certo é que casos como o presente são mais comuns do que pensamos e merecem ser objeto de proteção jurídica, até mesmo porque o preconceito não impede sua ocorrência, muito menos a imposição do ‘castigo’ da marginalização vai fazê-lo”, reforçou o desembargador na decisão.
 
Pós doutor e especialista em Direito de família, o advogado e professor Conrado Paulino da Rosa recorda que o Código Civil é de 2002, mas redigido na década de 1970, portanto por pessoas que nasceram na década de 1930. Para ele,  o código é "uma lei antiga para retratar uma sociedade tão complexa e dinâmica, ainda mais na seara familiar". O jurista também afirma que "não há princípio da monogamia no Direito brasileiro", mas sim o dever de "mútua assistência". 
 
— Sei que para a grande maioria das pessoas talvez possa parecer injusto, já que simplesmente acham argumentos morais, de que seria pouca vergonha. Posso dizer o seguinte: quem não concorda com famílias simultâneas, simplesmente não as estabeleça. Agora, se são experiências aconteceram, e não há dúvida, o próprio teor da decisão deixa claro que existia a relação paralela, não se pode simplesmente tentar punir as pessoas envolvidas por argumentos de moralidade. As pessoas têm o direito de serem felizes, seja em qual for a constituição da família — defende. 
 
Entenda o caso
 
O recurso ao TJ-RS foi movido por uma mulher que se relacionou por mais de 14 anos com o parceiro enquanto ele era legalmente casado. O relacionamento durou até a morte do homem, em 2011. No pedido, a autora sustentou que os dois chegaram a morar juntos em Canoas, na Região Metropolitana, e em Foz do Iguaçu, no Paraná.
 
Para isso, ela juntou ao processo débitos condominiais em nome de ambos, contas em nome dela, mas quitadas pelo homem, comprovante de hospedagem de ambos em apart hotel, cartão de embarque aéreo de ambos, convite para evento em nome de ambos, recibo de pagamento de emplacamento de veículo da empresa dele em nome dela e outras notas fiscais.
 
Já a esposa juntou a certidão casamento de ambos, de nascimento dos dois filhos, ficha de atendimento ambulatorial dele, na qual a cônjuge constou como responsável na data do óbito, enquanto a família viajava, fotografias do casal e filhos, todas sem data, e declarações de terceiros acerca da manutenção do matrimônio.
 
A autora da ação afirmou que era de conhecimento da mulher com quem o homem era formalmente casado o relacionamento entre os dois. Já a esposa relatou o contrário, "embora soubesse que ele teve outros casos extraconjugais e que gostava da noite, tendo o conhecido com esse comportamento", e que só foi saber da outra família após a morte.
 
Testemunhas ouvidas foram fundamentais no processo. Elas foram divergentes. Algumas falaram que o homem era separado e se relacionava somente com a autora da ação, que até teria recebido os pêsames durante o velório. Já outras contaram que ele era casado somente com sua esposa, com quem divida o quarto quando ele dormia em casa, e que desconheciam o outro relacionamento.
 
Após ler o relato de testemunhas e demais provais, o relator entendeu que ficou claro que a esposa do homem sabia do outro relacionamento.  Por isso, para ele, uma vez comprovada a relação extraconjugal “duradoura, pública e com a intenção de constituir família”, ainda que concomitante ao casamento, é possível, sim, admitir a união estável “desde que o cônjuge não faltoso com os deveres do casamento tenha efetiva ciência da existência dessa outra relação fora dele, o que aqui está devidamente demonstrado”.
 
Sobre a partilha dos bens, como apartamentos na planta, carros e parte nas empresas do homem, a 8ª Câmara definiu que deve ser feita em outro processo.
 
Outros dois desembargadores e uma juíza de Direito convocada concordaram com a decisão. O único voto divergente foi do desembargador Luiz Felipe Brasil Santos. Para ele, o Direito de família brasileiro está baseado no princípio da monogamia, e "se não são admitidos como válidos dois casamentos simultâneos, não há coerência na admissão de uma união de fato (união estável) simultânea ao casamento".
 
Cabe recurso da decisão a instâncias superiores. 

GZH