Em meio ao desafio do novo coronavírus e à instabilidade crônica no Ministério da Educação (MEC), uma das pautas mais importantes para a educação brasileira se aproxima dos 45 minutos do segundo tempo no Congresso Nacional.
É a renovação e ampliação do Fundeb, fundo de desenvolvimento da educação básica que responde por mais de 60% do financiamento da área, da creche ao ensino médio.
A lei atual, que vigora desde 2007, expira no final deste ano. O objetivo do fundo é garantir um investimento mínimo padrão por aluno na rede pública de todo o Brasil e reduzir a desigualdade entre regiões. Os recursos são compartilhados entre estados, municípios e União.
Para renovar o Fundeb, está em debate o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 15/15, cujo último texto da relatora, professora Dorinha Seabra (DEM-TO), foi apresentado na sexta-feira, 10.
O tempo é curto, mas o tema pode chegar à esperada primeira votação na Câmara dos Deputados nesta semana. A corrida é para votar a PEC a tempo dos recursos serem incluídos no orçamento de 2021. Do contrário, estados e municípios podem ficar sem dinheiro para bancar as aulas no ano que vem.
Histórico
A prorrogação do Fundeb se arrastou por muito mais tempo do que deveria. O plano era votar a emenda constitucional — que vem sendo debatida desde 2015 — ainda em 2019, quando o texto já estava praticamente pronto. Para 2020, ficaria somente a lei complementar que traria detalhes sobre sua regulamentação.
Mas com a desarticulação entre Ministério da Educação, da Economia, do governo federal e do Congresso, a votação não andou. E, em 2020, foi ainda mais atrasada em meio à pandemia.
Atrasos à parte, a Comissão do Fundeb conseguiu um consenso razoável ao longo do espectro político e entre diferentes vertentes envolvidas no Congresso e na sociedade civil.
O principal debate dizia respeito à participação da União nos recursos, que será ampliada pela nova proposta, e à duração do fundo, que pelo texto da PEC se torna permanente. Os dois pontos foram considerados uma vitória para os estados e municípios e elogiados por boa parte dos especialistas ligados à educação.
O Fundeb é hoje financiado majoritariamente pelos impostos dos estados e municípios, sobretudo o ICMS, que incide sobre mercadorias e serviços. Já a União contribui com ao menos 10% adicionais sobre o valor nacional do fundo, para complementar o orçamento dos estados que não atingem um investimento mínimo por aluno.
Pelo texto da deputada Dorinha, se aprovado, o complemento da União sobe gradualmente para 20% adicionais até 2026. O governo queria 15%.
No ano de 2021, a complementação já começa em 12,5%, e vai subindo nos anos seguintes. A ideia era ir a 15% já no ano que vem, mas chegou-se a um consenso com o Tesouro para reduzir o percentual em meio à queda na arrecadação de impostos pela pandemia.
Outra mudança é a distribuição dos recursos, não mais relacionada somente ao orçamento dos estados. Parte da complementação que a União vai fazer será direcionada também aos municípios, levando em conta a particularidade de cada cidade.
“O que estamos fazendo é mais Brasil, menos Brasília”, diz a professora Dorinha, relatora do projeto. O lema surgiu em campanhas antigas mas ganhou proeminência ao ser adotado pelo governo Bolsonaro e citado com frequência por Paulo Guedes, ministro da Economia.
Uma vitória contra a desigualdade
Apesar dos ajustes considerados necessários, a eficácia do Fundeb na última década é quase uma unanimidade entre especialistas da área.
Sua criação levou a uma drástica redução nas desigualdades regionais entre estados mais ricos e mais pobres do Brasil, que hoje é de 564% na relação entre o maior e o menor valor investido por aluno nos municípios. De acordo com um estudo da Câmara dos Deputados, sem a política de fundo, a desigualdade seria de 10.000%.
Por serem vinculados à arrecadação, os recursos do Fundeb também cresceram nos anos de bonança da economia brasileira. Em 2007, o valor correspondia a cerca de 48 milhões de reais. Em 2020, a projeção feita no fim do ano passado estimava 172 milhões de reais.
O dinheiro do fundo precisa ser investido no que se chama de “manutenção e desenvolvimento da educação básica”. Entre as principais categorias autorizadas estão salário de professores na ativa, além de aquisição de equipamentos diretamente ligados ao ensino. O recurso não pode, por exemplo, ser gasto com aposentadorias de professores.
Antes do Fundeb atual, havia desde 1996 o Fundef, seu antecessor, que contemplava apenas o ensino fundamental. O principal avanço do Fundeb foi incluir todas as etapas de ensino.
Sem o Fundeb, um município vulnerável do interior do Maranhão, por exemplo, que hoje consegue investir o valor mínimo por aluno, definido pelo governo no ano passado em cerca de 3 mil reais, teria apenas 450 reais para gastar com cada estudante da rede, segundo cálculos de Caio Callegari, coordenador de produção técnica do Todos Pela Educação.
Nacionalmente, em mais de 86% das cidades brasileiras, o Fundeb corresponde a mais de 50% do orçamento em educação.
Originalmente, o Fundeb foi criado para garantir uma previsibilidade orçamentária aos estados e municípios e alcançar, com os anos, a universalização do acesso à educação. Também incentiva a busca ativa dos gestores públicos para matricular alunos em idade escolar. Isso porque o repasse dos recursos está vinculado ao número de alunos em cada rede.
O fundo é destacado como uma das raras políticas públicas do Brasil que se consolidaram como política de Estado e não de governo, ou seja, que se mantém apesar das trocas de presidentes.
“Os municípios mais pobres do Brasil não conseguem nem manter escola aberta sem os recursos do Fundeb, não conseguem pagar água ou energia elétrica. Sem o fundo, o país entraria em um retrocesso em termos de cidadania sem precedentes”, diz Callegari, do Todos pela Educação.
As contas dos estados
Apesar dos avanços gerados pelo fundo, ainda há no financiamento da educação uma demanda histórica dos entes federativos por maior participação da União. Pelo modelo tributário brasileiro, é para Brasília que vão mais de 60% dos impostos arrecadados.
Em retorno, a União devolve o dinheiro aos governos locais por meio de fundos e programas nacionais. Na educação, o Fundeb é o principal mecanismo para esse repasse.
Enquanto isso, a operação da educação básica é majoritariamente local. Aos estados cabe boa parte dos anos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano) e o ensino médio. Aos municípios, os anos iniciais do Ensino Fundamental (do 1º ao 5º ano) e o ensino infantil.
À União, ficam as universidades federais, algumas poucas escolas e o papel de apoio aos entes federativos, incluindo programas nacionais hoje existentes — como de merenda escolar ou livro didático.
No atual Fundeb, o valor mínimo por aluno varia a depender da arrecadação do ano. Em 2020, ficou entre 3.643,16 reais por ano (nas séries iniciais urbanas) e 4.736,10 reais (no ensino médio de tempo integral, a etapa mais cara).
Nos últimos anos, nove estados que não conseguiram chegar a este valor vêm recebendo complementação da União: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí.
No novo Fundeb, na prática, alunos de todos os estados vão receber algum recurso da União. O modelo é chamado de “híbrido”, levando em conta especificidades dos estados e também dos municípios. Hoje, como só o orçamento geral do estado é critério, cidades pobres em um estado rico ficam sem o recurso adicional do governo federal.
Josué Modesto dos Passos Sobrinho, coordenador do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e secretário de Educação do Sergipe, acredita que a nova formulação será positiva para cidades pobres. “Um município pobre do meu estado, o Sergipe, não recebe recursos da União via Fundeb, ainda que fique na fronteira com a Bahia, que recebe”, diz.
O novo Fundeb ainda estipula que, da complementação da União, 2,5% vão ser distribuídos de acordo com avanços em indicadores educacionais pelas redes — embora ainda haja poucos detalhes sobre quais serão esses critérios.
Como a responsabilidade pela educação básica recai mais em estados e municípios, no começo do debate do novo Fundeb, algumas entidades defendiam que a complementação da União chegasse a 40%. (A União também pode voluntariamente passar do mínimo constitucional estabelecido, o que raramente ocorre).
Em nota divulgada na última sexta-feira, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma das organizações que defende 40% adicionais, diz que é a favor, neste momento, da votação do texto com os 20% como ele está no Congresso — desde que o relatório da professora Dorinha não seja mais alterado.
“O Fundeb é a única política estrutural para a educação básica que foi até agora de fato cumprida. Apesar de nunca termos avançado em complementação da União para além do mínimo e, por isso, o aumento desse mínimo é um dos principais pontos de melhoria para o novo Fundeb”, diz a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda.
Pós-pandemia
O Fundeb era o tema central de 2020 na educação, mas ficou um bom tempo em segundo plano em meio às discussões sobre a pandemia e o troca-troca no MEC. O coronavírus e a instabilidade na pasta, contudo, só reforçam a necessidade da discussão.
Com a crise com potencial de reduzir o PIB em até 9,1%, segundo projeção do Fundo Monetário Internacional, o recurso hoje destinado à educação também vai cair, devido à menor arrecadação.
De acordo com um estudo do Todos pela Educação e do Instituto Unibanco, a pandemia pode trazer uma perda de até 27,7 bilhões de reais no orçamento dos estados e municípios para educação, enquanto exigirá novos investimentos para ensino à distância e ampliará as desigualdades educacionais — como mostra reportagem da última edição da EXAME. Outro estudo, da Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação (Fineduca) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, traçou três cenários possíveis de crise e aponta que a educação pode perder 52,4 bilhões de reais no pior deles.
Mesmo antes do coronavírus, o montante investido pelo Brasil em educação era tema de debate. Não há uma relação mecânica entre aumento de gasto e resultados educacionais, e há bons exemplos internacionais de países em desenvolvimento que investem menos que o Brasil, mas conseguem maiores avanços de qualidade.
Ao todo, o Brasil investe na área cerca de 6,1% do PIB — desses, 4,8% são na educação básica, segundo o estudo mais recente do governo federal, com base em dados de 2015. O investimento em educação básica está estagnado nesta faixa do PIB desde o fim de 2012, mas é similar ao dos países da OCDE, clube dos países ricos (4,6% do PIB em 2015).
Segundo o mesmo relatório, o Brasil investe por aluno ao ano 4,4 mil em dólares por paridade de compra, ante 10,5 mil na média dos países da organização. E mesmo o valor atual está em risco com a queda de arrecadação devido à pandemia.
Além do novo Fundeb, se discute no Congresso um pacote de socorro à educação já para 2020. Uma ajuda já foi dada a estados por causa da pandemia, mas foi feita sem obrigar os governantes a gastar parte do recurso em educação, o que deve levar o dinheiro majoritariamente para gastos emergenciais com saúde.
“Há um duplo vetor acontecendo durante a covid-19: a queda na arrecadação e a necessidade de mais investimento em função das restrições dos parâmetros sanitários”, diz Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco.
Novo ministro, velhos problemas
No auge da discussão sobre o Fundeb, a ausência do MEC nos debates educacionais no Congresso também deu o tom.
Neste mês de julho, a pasta acumulou mais de duas semanas sem ministro. Na sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro nomeou o Reverendo Milton Ribeiro, ex-vice-reitor do Mackenzie.
Mesmo na gestão do ex-ministro Abraham Weintraub, o MEC também pouco se movimentou para avançar com a renovação do fundo, segundo fontes ouvidas pela pela revista/site Exame.
Para Sobrinho, do Consed, a ausência do MEC foi uma das responsáveis por atrasar as discussões do novo Fundeb. “É comum que haja um embate entre o Ministério da Economia e o ministério do setor, no caso, o MEC, que vai defender a necessidade daquele investimento e tentar avançar no Congresso. Dessa vez, o MEC simplesmente desapareceu, isso é inédito”, diz.
Mais cedo na sexta-feira, outra nomeação de Bolsonaro foi alvo de críticas do setor ligado à educação em Brasília. O presidente não indicou nenhum representante de estados e municípios para a nova formação do Conselho Nacional de Educação, órgão do MEC responsável pelas políticas educacionais, se restringindo a nomes ligados ao astrólogo Olavo de Carvalho.
“O MEC deveria estar tabelando preços de insumos de proteção, tecnologia, comprando mais barato por sua escala. Mas, até agora, a educação na pandemia ficou na mão dos estados e municípios”, diz o deputado João Campos (PSB-PE), da comissão parlamentar externa que acompanha os trabalhos do MEC. Campos faz parte de um grupo de parlamentares que apresentou uma ação legislativa para barrar a nomeação do conselho.
Os temas trazem ruídos, mas na prática, a pauta no Congesso deve seguir avançando com o MEC à margem. “Nunca tivemos ajuda do MEC para o Fundeb. Respeito o ministro que foi nomeado, mas não temos tempo de ele entender a discussão”, diz a deputada Dorinha.
A expectativa, agora, é que o texto não seja mais alterado nas votações nas duas casas. Depois, vem a lei complementar, que decidirá questões como alguns dos critérios para distribuição do dinheiro. Neste momento, o futuro da educação dependerá da agilidade do Congresso. A nova geração não pode esperar.
Fonte: Exame
Fonte: Exame