Uma caixa de sapatos vazia possui múltiplas utilidades. Vamos falar, especificamente, de uma que, inicialmente, serviu para acomodar um par número quarenta e dois, fabricado para homem.
Caixa bonita, reforçada, certamente com a finalidade de guardar os sapatos que continha, por anos – sapatos sociais de alto padrão que só, esporadicamente, seriam usados por quem os comprara. Tais sapatos, como se diz popularmente: “saem da garagem, somente em ocasiões muito especiais!”.
Mais dia, menos dia, a caixa divorcia-se dos sapatos que moravam dentro dela. Aposentada da tarefa original, é aproveitada para outras finalidades. Reforçada e de bom tamanho, serve para a guarda de cartas da namorada; para estocar fotografias e documentos; para guardar objetos de estimação; armas de fogo; peças de computador; ferramentas e qualquer outra coisa que couber dentro. Fechada e depositada em lugar seguro, é um cofre!
Os sapatos acabam pelo uso, mas a caixa permanece conservada. Muitas delas trazem recordações boas e más. Fotos de um baile; convite para a missa de sétimo dia de um amigo, de um parente...
A caixa de sapatos utilizada para guardar “coisas” é como chaveiro: tem o conteúdo gravado na memória de quem as possui.
“ – Você já reparou na caixa?” Grita a mãe diante da reclamação do filho que não encontra a tesourinha de aparar as unhas. Aberta a caixa, lá está o objeto procurado, quietinho, acomodado e livre da poeira do tempo!
“ – Hoje vou para o sótão! Exclama decidido o Joãozinho. “Vou virar aquelas caixas de sapato pelo avesso. Tenho que encontrar a certidão de casamento do nonô para provar que sou neto de “Carcamano” e me naturalizar italiano. Mamma mia. O Berluscono que se cuide!”
Um dia encontrei uma menina que caminhava, chorando, levando uma caixa de sapatos. Perguntei o que tinha acontecido e obtive a resposta: “ – Meu gatinho que morreu, e estou indo enterrá-lo!”
A caixinha tem servido para contrabandear aves e pequenos animais, basta que se façam uns furinhos nela para que o ar entre e pronto! O instrumento para a prática do crime está perfeito para o uso.
Algumas vezes a crônica policial registra: essa caixinha de múltiplas utilidades tem servido para a execução de crimes mais graves. Tem sido utilizada como esquife.
Era uma caixa de sapato com as cores marrom e branca, bonita e reforçada, jogada à beira da estrada que levava ao Clube Social. No lusco-fusco de um dia que virava noite, a caixa chamou-me a atenção. Cinquenta metros adiante, engrenei a ré e voltei para onde estava a caixa.
Abri-a, e a surpresa: dentro, uma criança recém-nascida que, com os punhos do tamanho de uma azeitona, socava a tampa da caixa. A criança não pereceu porque uma parte do cordão umbilical ficara para fora, o que evitou que a caixa se fechasse totalmente e o bebê morresse sufocado.
Imediatamente coloquei, no automóvel, a caixa de sapatos número 42, com as cores marrom e branca, bonita e reforçada, que continha dentro o bebê e toquei para o Hospital mais próximo.
Durante o trajeto, posso jurar, por telepatia, ouvia os protestos do pequeno brasileiro: - Como minha mãe pode descartar-me como uma porcaria qualquer? Sou um ser humano, fruto de um relacionamento consensual entre adultos! Sou gente! Sou filho de Deus!
Tomado de profunda emoção e rezando para que o pequeno companheiro aguentasse, cheguei ao Hospital, gritando: - É um bebê! Um bebê que foi abandonado no mato! Acudam!
A assistência foi imediata, uma enfermeira levou a caixa de sapato número 42, com cores marrom e branca, bonita e reforçada, como bebê. O tumulto foi grande, algumas mulheres eu ali estavam, chorosas, gritavam: “ – Maldita! Mãe desnaturada! E um dos médicos: “ – Céus, eu tenho uma caixa igual àquela em casa, mas o número dos sapatos é 40!” Vamos salvá-lo, para isso estamos aqui!
Fiquei horas no saguão do Hospital esperando notícias do pequenino. Finalmente a enfermeira que havia pegado a caixa com o bebê chegou até mim e, colocando sua mão no meu ombro, disse: “ – Fique calmo, está tudo sob controle. É um belo menino e já está bem.
Sai dali pensando: não fosse aquela caixa de sapatos número 42, marrom e branca, bonita e reforçada, o pequenino teria morrido, com certeza!
José Alberto Vasconcellos, no livro “O choro dos anjos”